sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Sotaque estranho


Via de regra desenvolvemos experiências negativas em relação à gagueira e temos lembraças negativas de momentos em que não conseguimos, ou mais frequentemente, não nos é dada a oportunidade e a tranquilidade de nos expressarmos, quer pelos outros, quer por nós mesmos. Falar outro idioma (ainda mais depois de uma certa idade) já é algo desafiador por si só, exige elaboração das estruturas gramaticais, acuidade auditiva e uma coisa que não nos é tão desconhecida: prestar atenção ao sons que se está produzindo. Eu procurei ler um pouco a respeito e algumas coisas parecem bater com o que eu experiencio. Quando se começa aprender uma língua, as vezes não se gagueja no começo, mas conforme se começa a dominar aquela língua os episódios de gagueira ficam mais frequentes. Isso acontenceu comigo com o inglês e com o esperanto. 
Ainda não é certo mas alguns estudos sugerem que crianças bilíngues são mais susceptíveis a se serem gagas e que a idade de exposição ao segundo idioma também excerça alguma influência, sendo o periodo até os 5 ou 6 anos mais crítico. Todavia, são muitos as variáveis envolvidas, como eventos associados com exposição à segunda língua (mudança de país, etc), o contexto em que a segunda língua é falada (com quem, onde) e por aí vai. O ponto é que há raros registros de pessoas que só gaguejavam em uma língua e não em outra, ou seja, seremos gagos em esperanto, english, français, español...
Conforme avançamos, ou já desde o começo, temos que nos acostumar a gaguejar com os fonemas novos daquela língua. Muitos gagos temem certos fonemas, por exemplo, eu não gosto de palavras que começam com A, tem quem não gosta de L, R, F e por ai vai. Quando vou falar em inglês, não gosto de palavras que começam com w, porque achava bizarro eu fazendo wowowowowowo, wawawawa ou wwwwww To me trabalhando pra não esquentar mais a cabeça com isso. Costumo prolongar o r também: rrrrrrrreaction, rrrrresponsabilty.
Felizmente, existem gagos em todas as culturas em todas as línguas, existe gente com falas desviantes por todo lado.Isto é, não estamos sozinhos. É mais confortável quando temos um modelo mais representativo...um gago estadunidense,um  japonês, uma gaga francesa, chinesa, russa :)
Depois que assisti um vídeo de uma estadunidense gaguejando no rrrrrrrrrrrrr, achei legal e não me preocupo mais tanto com isso. Já vi uns gaguejando no W tembém. Vi também uma francesa que repetia o de, du de..dans.., e nos un, un, un, un marécage achei legal, porque eu também costumo repitir essas palavras


Hoje um dos meus proximos desejos é ir num encontro internacional de gagos e ver como é *.*
Já aconteceu de gente perder o interesse em falar comigo quando comecei a travar, mas hoje interpreto como atitude capacitista ou de desconhecimento da pessoa. As vezes se to tentando praticar o francês, a pessoa me fala: You can speak in english
Gaguejei, não significa que eu não sei :P As vezes ao falar numa outra língua me coloco muita pressão pra falar rápido ou me exijo certa fluência.
Numa outra língua, é normal haver momentos de incerteza, hesitações, pausas, erros...soma-se a isso a gagueira e podemos ter orgulho de nós mesmos quando engajamos em uma conversa com um estrangeiro.


Pra quem nunca escutou, aí vai algumas amostras:
Hebreu
Russo

Tempo em gel

Gaguejar, é as vezes se perder na fluidez do tempo
Viver um minuto de 15 ou 15min de uma hora
Exprecienciar um loop temporal num mesmo presente
Um dejà vu de palavras, emoções e premonições
Do passado pro futuro, um futuro de passado
A certeza do futuro na incerteza do presente

Um sempre qu. qu. qua. ---- -- qu. quase que é nunca
Um nunca vai que é quase ssssssssssssssempre

(vvvv -- volt. ..) Voltar para chegar
Parar para aaavançar
Ir sem se . -- -- .. .. alcançar
Ou nem sequer sair do lugar
Cccccc. cccc . cccomeçar, e já se cansar
Para então, terminar sem acabar


Oratória

Talvez um dos maiores desafios pra um gago seja falar em público. Para mostrar que isso é possível na prática, vos apresento o professor Jorge Luis Souto Maior. Formado em direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas, hoje é professor livre docente da Universidade de São Paulo atuando na área de Direito do Trabalho e Direitos Humanos.
 O conheci através do vídeo de julgamento do Beto Richa realizado pelo curso de Direito da Universidade Federal do Paraná, indicado pela minha professora do PIBID (Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência). Quando percebi que ele era gago, fiquei surpreso com o quão destemido ele é, sem dúvida mais um modelo a seguir. Nas minhas experiencias no PIBID, estar frente aos alunos era certamente o maior desafio pra mim, especialmente nos momentos que precisava explicar algo em voz alta para toda a classe. Minha professora pediu que se não pudéssemos assistir o vídeo na íntegra, que pelo menos assistíssemos a sua fala, ou seja, quem bom que eu soube da sua existência. Quando eu escutei ele gaguejando ali na frente daquela platéia, me perguntei ser eu seria capaz de fazê-lo um dia. Como no direito, a retórica é muito valorizada, posso imaginar a pressão que ela deve enfrentar. Acho que ele maneja bem os momentos em que gagueja, as vezes abre um sorriso, dá uma pitada de descontração e continua, o que é uma estratégia boa quando estamos muito pressionados. É importante não sermos tão sérios e mais compassivos e flexíveis com nós mesmos*.As suas palestras são exemplos de que há alternativas para sermos bons oradores! 
Alguns vídeos dele no youtube:
Esse é o que eu falei:
Ele fala em 1h 45min e depois retoma a fala no finalzinho do vídeo.
https://www.youtube.com/watch?v=dGcaQvQ8hKk

*Eu gosto da lição do bambu. Ele consegue enfrentar grandes tempestades e ventanias porque enverga mas não quebra devido a sua  flexibilidade. Na vida, é importante termos essa flexibilidade, do contrário, nos assemelhamos a árvores rígidas, passíveis de serem partidas e arremessadas ao chão pelas forças atmosféricas 

Paradoxo

A gagueira é paradoxal. Quanto menos você a quer, mais ela vem. Quanto mais não é aceita, mais escabrosa ela fica. Contrariamente, ao aceitá-la, ela se suaviza. Quando é mais preciso falar, fica-se sem voz. Ante ao espelho, ela se desvanece. É fugindo que se a encontra. Ela faz o som intercarlar-se com o silêncio. Da boca pra fora e da guela pra dentro. Relaxar e enrigecer. Abrir para não sair. O eu e o outro, o outro e eu.


Olhando bem (escutando também) ela é linda, é um poema proferido em verso livre. É cíclica e pontual. Paradoxal. Os paradoxos desafiam a compreensão e nos convidam a reflexão. No Zen budismo os koans, enigmas absurdos e paradoxais, são passados para os aprendizes para conscientizá-los da limitação do pensamento lógico, e das inconsistências da comunicação verbal.


Experienciá-la é transitar entre o ser e o não ser. É a angústia de estar sem se expressar ou expressa-se com um não falar.

É as vezes morrer, sem sequer nascer

Flower

If you labor, you are a “laborer”,
if you work on a farm, you are a “farmer”,
and if you flow, you are a “Flower”
Let yourself blossom today…

Não sei quem escreveu





Libras

Falar uma segunda língua é uma experiência legal e uma porta de entrada para uma nova cultura, ainda mais pra gente do Brasil onde o português é a única língua (sem considerar as indígenas e tal). A imensa maioria de nós temos experiências ruins com a nossa fala, e a vontade de aprender uma língua nova pode ser minada quando as dificuldades de falar um novo idioma se soma à opressão imposta ao nossos falares.
Usualmente quando pensamos em língua evocamos imediatamente as línguas orais, que é a modalidade em que se utiliza o trato vocal para produzir sons e os ouvidos para captá-los. A modalidade oral não é todavia a única modalidade possível, e como todos já devem ter visto, as línguas de sinais operam na modalidade espaço-visual sendo capazes de transmitir informações tão complexas quanto as línguas orais.As línguas de sinais podem ainda ser adaptadas para a comunicação de surdo-cegos, adquirindo componentes táteis. Isso significa que poderiamos aprender outras línguas em outra modalidade. Outras espécies usam outros meios, tais como as formigas que usam o tato e a quimiorrecepção para comunicarem-se. Isso me entusiasmou muito e no segundo semestre do ano passado me matriculei na diciplina de libras, o que eu ia ter que fazer mais cedo ou mais tarde pra me graduar na licenciatura. Desde de então, tenho me maravilhado com as línguas de sinais, com a possibilidade de me expressar na modalidade espaço-visual e mergulhar na cultura surda. Os surdos são vítimas do capacitismo na cultura Ocidental desde remotos tempos, tendo seus direitos historicamente negados, como por exemplo, não tendo acesso à educação. Muita vezes, ainda hoje são vistos como alvo de algum castigo divino por algo que os pais tenham feito e tem que lidar com chacotas e outras formas de agressão.
 Há até uns 40 anos atrás as escolas de surdos se baseavam no modelo oralista, focado na leitura labial e imitação da fala, e proibiam os estudantes surdos de usar línguas de sinais, pois acreditavam que isso atrapalhava o seu desenvolvimento e inserção na sociedade ouvinte. Foi somente com o trabalho de pesquisadores como William Stokoe que as línguas de sinais tiveram seu status de língua reconhecido e os surdos começaram a ter sua cultura reconhecida. Isso significa que aprender libras abre portas pra cultura dos surdos, com direito a gírias, regionalismos e tudo mais e ainda treina áreas do cerebro relaciondas à percepção espacial*
 E...não gaguejamos em Libras. Isto não quer dizer que não exista gagueira em língua de sinais, pois há registros  de surdos com comportamentos similares ao disfluente. Isto é teoricamente muiiiiito interessante! Deixo no final um link ** pra quem quiser ler mais a respeito, infelizmente em inglês. 

Interpretação que eu curti muito de Born this Way, Lady Gaga na Língua Americana de Sinais
https://www.youtube.com/watch?v=Qdw18whuCxw
Aquarela em Libras:
https://www.youtube.com/watch?v=d_OZ_-hrufA

* The bimodal bilingual brain: Effects of sign language experience   http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2680472/     
** The Existence of Stuttering in Sign Language and other Forms of Expressive Communication: Sufficient Cause for the Emergence of a New Stuttering Paradigm?
https://www.mnsu.edu/comdis/isad9/papers/snyder9.html

Libras e Fluência

Como já expus tive uma boa experiencia com libras e quando voltar pro Brasil quero aprender mais. Mas aí um dia escutando um episódio de StutterTalk, o entrevistador perguntou pra um menino se existisse uma pílula que curasse a gagueira, se ele a tomaria. O menino respondeu que não, porque hoje ele reconhece que a gagueira tem um papel importante na sua vida, em relação a personalidade, amizade, enfim sua história de vida
 Essa é uma das perguntas clássicas do programa e eu pensei o que eu responderia. Na hora a minha resposta foi não. Eu pensei melhor sobre o assunto e.....se eu pudesse escolher em que ocasiões tomar hahaha Então o apresentador diz, que uma resposta que ele gostou veio de uma garoto jovem, e foi exatamente essa. Hoje acredito que meu desconforto não é (ou tem sido cada vez menos) com a gagueira em si, mas com as reações das pessoas em relação a ela. Talvez isso signifique que eu precise trabalhar mais na minha aceitação a chegar num ponto que a rejeição das pessoas não me incomode mais. Isso tem a ver com outro lado da gagueira, mais psicológico, sobre o qual quero organizar melhor meus pensamentos antes de escrever. Me espantei quando percebi que a gagueira faz parte de mim, que teve um papel na pessoa que sou hoje. E como não seria ?!  Sem ela, eu seria outra pessoa hoje. Para me amar completamente e com o devido respeito, preciso me apoderar de minha história e meu presente; a aceitar as vicissitudes pelas quais passei. É legal também, se conscientizar que 
não estamos acabados, definidos e estáticos, pelo contrário, estamos sempre em transformação, em constante aprendizado, como dizia Paulo Freire, um devir constante.
Eu estava pensando se acontecesse de um dia, ficando fluente em libras, se eu ia preferir me comunicar nela do que numa língua oral.Seria como que uma fuga. Mas senti que não conseguiria deixar de usar minha voz, que se fosse possível eu me comunicar só em libras (o que não é obviamente) eu iria perder um pedaço de mim, como que negando algo. Saber que não teria que lidar com a gagueira é legal, mas fazer disso uma refúgio permanente, não acho atrativo. 
Então, meu imaior interesse por linguas sinais é devido ao seu caráter espaço-visual e as decorrências disso na comunicação, como a possibilidade de conversar a uma certa distância e a possibilidade de receber informações por duas vias simultaneamente (visual e auditiva). Acho isso curioso. 
Se alguém tem experiências com isso, ou já pensou sobre, deixa um comentário aí.

A todos um abraço!