quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Capacitismo parte 3- Gagueira e capacitismo

O que a gagueira tem a ver com capacitismo?

Tudo a ver. Quando se tenta fazer um gago falar ‘fluentemente’, basicamente o que se está fazendo é normativizando-o. Adequando-o no padrão fluocêntrico, segundo o qual há um ritmo de fala adequado, nem muito devagar nem muito rápido, no qual todas as falas devem idealmente fluir. É o modelo usado na televisão e na rádio, e está estatisticamente mais representado na população. Ao idealizar essa fala,  cria-se dois polos opostos, um onde reside o ideal de fala perfeita, bonita e clara, que assim como o corpo perfeito, vira alvo de desejo, e um outro para as falas desviantes de gagos, fanhos, lingua-presa, etc...falas ‘imperfeitas’.
Como sabemos  a gagueira não é igual todos os dias, em todas as situações, pelo contrário, ela responde à muitas variáveis. A natureza rebelde da gagueira sabota nosso gosto e frustra o desejo de submissão do corpo à vontade e à adequação forçada. Ao contrário da rouquidão ou da coriza, bem como outras reações do corpo ao abuso ou mal-estar, a voz do gago é petulante, indo contra a premissa capitalista de (auto)controle e padronização. Assim, muitos veem gagos como pessoas sem autocontrole suficiente, fracos, burros e incompletos, portanto não são boas peças para o sistema de produção no qual estamos inseridos. Na esperança de falar ‘fluentemente’ muitos mergulham nos exercícios fonoaudiológicos para decepcionarem-se, pois cada vez que recaem sentem a frustração de não conseguirem domar sua fala e descobrem que a gagueira é muito mais que um simples fenômeno articulatório ou ritmico.
Quando não somos escutados porque somos gagos, estão dizendo que nossa voz não merece ser ouvida, não estamos no polo privilegiado da fluência.Além do histórico de ridicularização ao qual somos submetidos temos que escutar dos outros (supostamente bons falantes) que somos mal falantes. Uma conjunção de fatores nos dizendo que há algo de errado com nossa fala,nos encorajando a vigiar cada frase, as vezes cada sílaba a ser proferida. Um verdadeiro inferno psicológico. Ao invés de nos sentirmos confortáveis com nossa fluência, permeada de silêncio e colorida de repetições, aprendemos a odiá-la e evitá-la ao máximo, para poupar dos outros alguns minutos. Nos dizem que se quisermos ser ouvidos com seriedade, devemos abandonar nossa expressão natural e imitar a fala dos outros, supostos bom comunicadores.Numa sociedade em que tempo equivale a dinheiro, onde tudo caminha para a padronização e ideias eugenistas são direcionadas aos ‘deficientes’, os falares desviantes são tidos como naturalmente imperfeitos. Vivemos numa sociedade que prima a competição entre as vozes, onde quem vence é aquele que melhor fala a língua do capital. Sob os ditâmes de um higienismo vocal as falas aberrantes são enviadas ao tratamento médico para serem equalizadas sob a pena de serem escarnecidas e ignoradas. Aquele cuja voz escapa ao alcance da intervenção médica está sujeitos à violência simbólica, psicológica e mesmo física.


Escuta ativa



No diálogo escutar é tão importante quanto falar. No Ocidente tendemos a acreditar que escutar é uma ação puramente passiva e neutra. Mas não. Aquele que escuta tem expectativas sobre o que ouve, coleta ativamente o que ouve segundo suas experiências anteriores. Quando uma pessoa com um sotaque menos popular fala a uma grande massa de pessoas de outra região (com outro sotaque), ele tende a ser marcado e muitas vezes até criticado porque é dificil entender o que ele está dizendo. Mais uma vez os ouvintes que são a maioria estatística passam como neutros, e por isso se colocam numa posição de critica do outro. De maneira semelhante, os falares com diversidade funcional são escutados como anormais. Quando um ouvinte completa nossas frases e está apressado, ele está dando sua parcela de contribuição para minar a conversa baseado em suas expectativas, mostrando-se assim inflexível na sua maneira de conversar. Se conversar é um ato que envolve duas pessoas e é de natureza dialética, o gago não é o único responsável pelo sucesso da conversa.
Muitos gagos se lembram que na infancia gaguejar não era um problema à comunicação e para fazer amizades, sendo apenas na adolescencia que a gagueira tornou-se um incômodo. Isso acontece porque conoforme as crianças se tornam maiores vão absorvendo cada vez mais o modo de pensar da sua sociedade, neste casode inferiorização e discriminação do diferente. No dia a dia aceitamos a culpa de nossos diálogos interrompidos e dos problemas decorrentes da gagueira, como os momentos de depressão. Todavia, nos lembremos que  em nossa sociedade,  esse discurso de culpabilizar a vítima pela agressão sofrida é recorrente. Não é díficil escutar alguém dizer que se aquela mulher não estivesse com um vestido tão curto não teria sido estuprada ou que se aquele garoto não agisse como mulher não precisaria enfrentar preconceito nenhum. O problema não reside nas pessoas em si, mas sim no tratamento que a sociedade dá ao que não considera normal segundo seus padrões estanques.
O discurso médico aqui reinforça a crença de que gagueira é uma doença, conquanto não considera o fator social da gagueira. Ao se mesurar a gagueira com instrumentos afim de quantificá-la, se contribui para sua objetificação, como se ela fosse um parasita da fala, reinforça que há algo errado naquele falar que deve ser realinhado. Alguns gagos se referem a gagueira na 3ºpessoa, como se ela fosse algo ao invés de uma característica da sua fala, motivando o desejo de retirá-la de sua voz, dificultando aceitá-la como sua.


Gaguejar pode ser belo

Há pessoas que se privam do direito de falar para poupar o outro do incômodo de lhes escutar. Nestas situações cabe a nós sermos tão desafiadoes quanto nossa fala e firmamos nosso lugar. Se seguirmos a opnião dessas pessoas seria necessário proibir pessoas com diversidade funcional desaírem às ruas, casais gays de demonstrarem seu amor e negros de tocarem certas pessoas simplesmente pelo fato que elas não toleram diversidade e se sentem incomodadas. Quando damos ao outro o direito de julgar se falamos bem ou não segundo seu modo de entender o mundo furtamos de nós mesmos a chance de encontrar no falar gago a sua beleza. Acreditando que apenas as falas que se ajeitam em modelos estreitos merecem nossa apreciação, desperdiçamos a chance pioneira de descosbrir a beleza e o ritmo natural de nossa fala


Performance

É interessante que se por um lado não se espera que um cego realize uma tarefa do mesmo modo que um vidente, mas muitas vezes espera-se que um gago tenha a mesma performance que um ‘fluente’. Isso tanto reflete ignorância sobre a natureza da gagueira como mostra a tentativa de normativizar a fala do gago. É algo semelhante ao que os gordos e dislexos enfrentam, pois é comum atribuir sua condição por preguiça e falta de controle sobre si mesmos, independentemente da fisiologia particular do indivíduo.  
A pressão para falar como um fluente apenas gera desconforto. Me lembro de estar fluente ao encontrar com pessoas novas em festas ou ir num encontro e sentir uma pressão interna para não gaguejar receiando parecer ridículo ou que isso pudesse me fazer menos interesse. Nestas situações, eu interpretava que passar-me como fluente servia como um prerequisito para a aceitação do outro.


Ao aplicarmos uma visão crítica e rever nossa própria história podemos nos  instrumentalizar em prol da legitimação de nossa própria experiência. Falamos nosso próprio 'dialeto' FLUENTEMENTE. A homogeneização e inferiorização das falas desviantes se fundamentam em ideias capacitistas. Segregar espaços onde admitem-se gagos e outros onde sua presença e expressão é inadmissível, é agir na mesma base de raciocínio que segregou legalmente mulheres e negros.
É possível ser gago e ainda sim ter diginidade e orgulho de si mesmo. É hora de desconstruir as ideias equivocadas da realidade baseadas em modelos materialistas, reducionistas e opressivos em prol de nossa libertação e afirmação.
Precisamos afirmar nossas vozes como legitímas e dignas de serem escutadas!

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